
Francisco Martins Rodrigues foi um dos que se evadiram do forte de Peniche(1) em Janeiro de 1960, juntamente com Álvaro Cunhal, mais oito presos comunistas, dos quais cinco eram membros do Comité Central. Fuga espectacular que vinha justamente demonstrar como era possível fugir de uma prisão para presos políticos, tida pelo regime como de alta segurança.
FMR tem, após a fuga, uma ascensão muito rápida no aparelho partidário. Durante quase um ano colocado numa tipografia clandestina, cooptado para o Comité Central, responsável do Avante!, controleiro do sector militar, controleiro do sector estudantil em plena crise académica de 1962, vindo a participar na reunião do CC de Dezembro desse ano, em Vila Nova de Ourém, onde é constituído o Comité Executivo, que passará a integrar com Blanqui Teixeira e Alexandre Castanheira.
Nessa altura, havia mais de um ano que o Comité Central não reunia, pois numa importante vaga repressiva seriam presos três importantes quadros que se preparavam para participar numa reunião de Direcção — Joaquim Pires Jorge, Américo Gonçalves de Sousa e Octávio Pato.
Assim, a reunião de Dezembro de 1962 tornar-se-á particularmente importante porque, por um lado, ao criar a Comissão Executiva, na realidade uma nova estrutura dirigente estatutariamente omissa, consagra a instalação da maioria do Secretariado do CC no exterior — Cunhal, Joaquim Gomes e Sérgio Vilarigues, estando apenas no interior, Blanqui, precisamente como responsável da Comissão Executiva.
Mas esta reunião marcará a aceleração do processo de sistematização das divergências de Martins Rodrigues com a maioria do Comité Central. Da reunião não saiu nem uma palavra sobre o dissídio sino-soviético já em fase adiantada de desenvolvimento, mas, ainda assim, são considerados alguns dos pontos que se tornarão estruturantes na elaboração do programa que virá a ser aprovado no VI Congresso do PCP e em que há um esforço acrescido para definir as condições em que, na lógica da linha do levantamento nacional, se colocava a questão da violência revolucionária, demarcando-se dos contornos do chamado «golpe de Beja» despoletado no início do ano e em que participaram militantes e simpatizantes do partido, alegadamente sem a autorização deste.
Segundo o documento saído da reunião de Dezembro:
«A tarefa que se coloca perante as forças democráticas não é a de aliciamento de militares para a preparação de um golpe militar (com ou sem a participação de grupos civis armados), mas a da constituição de uma forte organização revolucionária nas forças armadas que possa intervir de uma forma decisiva numa situação de crise revolucionária».(2)
Porém a situação não deixaria de evoluir. No Rumo à Vitória, de Abril de 1964, quando já estava consumada a expulsão de Martins Rodrigues e formada a FAP/CMLP, Cunhal afirma que
«o agravamento da crise do regime fascista, o desenvolvimento da luta política de massas, a radicalização destas, a brutalidade do aparelho repressivo, colocam ao Partido uma tarefa nova: a tarefa de organizar acções de autodefesa das massas, acções que visem atingir mais directamente o aparelho militar da guerra colonial, que criem dificuldades ao aparelho repressivo, que dificultem a propaganda fascista e dêem novos aspectos à acção e propaganda antifascista. A execução de tais acções não pode ser deixada à espontaneidade. Tem de ser encarada no terreno prático.»(3)
Em dois anos, a posição do PCP aparentemente evoluíra do ponto de vista do recurso à violência; porém, essa evolução na retórica do discurso tinha basicamente por objectivo manter enquadrados os sectores radicais do partido que se mantinham críticos em relação ao métodos «brandos», mas não tinham cortado com o partido, embora este soubesse bem que a propaganda da FAP/CMLP não lhes era propriamente indiferente.
Na realidade, a «cisão» de Martins Rodrigues era fruto da enorme radicalização que se viveu no país em 1958 e em 1961-62. O Partido, depois da correcção do «desvio de direita», teoricamente consumado em 1961, não conseguia, no seu entendimento, dotar o partido de uma linha revolucionária, de esquerda.
A comparação entre os escritos conhecidos de Martins Rodrigues antes e depois da sua prisão de 1957 mostra claramente como o seu pensamento evoluíra.
Antes é um jovem militante empenhado, inquieto, mas confiante nas novas tarefas que o esperavam, esforçado na aplicação da linha do partido, orientado para uma permanente melhoria enquanto quadro clandestino, sem evidenciar sinais de discordância e muito menos de ruptura.
A sua funcionalização em Outubro de 1954 marca, como inevitavelmente marcou para todos os que mergulhavam na clandestinidade, uma fase nova e completamente diferente da sua vida. Porém, e porventura, ao contrário de muitos outros, reconhece:
«(...) Fiz a vida do militante clandestino, o que em relação aos três anos do MUD Juvenil foi frustrante, porque era uma vida de isolamento total. Só esporadicamente contactava com pessoas, não discutia com ninguém... No MUD Juvenil, embora estivesse sempre a ser perseguido e preso, convivíamos bastante, falávamos uns com os outros. As reuniões eram muito agitadas e havia muita discussão. No Partido foi como cair num poço. Senti muito, a minha companheira ainda sentiu mais. Deixou de ver pessoas, passava o tempo a tratar da casa e a escrever à máquina».(4)
O documento que redige como notas ao estudo do Que Fazer?, de Lenine (Documento 3) revela-nos o jovem militante a amadurecer a sua experiência de funcionário clandestino, mas a identificar com clareza os mecanismo do acomodamento, da burocratização e da rotina que foram, em larga medida, características deste universo fechado em que se movimentavam os funcionários clandestinos, cuja ligação à vida real e ao pulsar social do país era esbatido, moldado ao discurso partidário dominante e mediado pelo controlo espaçado das células e comités operários.
Martins Rodrigues refere como erros seus a subestimação da classe operária, embora feita de contemplação perante os quadros proletários e a adulação das massas, mas que não se traduzia depois em acções concretas de iniciativa partidária. No fundo, segundo o jovem funcionário, o que determinava aquela objectiva paralisação da actividade era uma tendência burocrática para resolver os problemas e as situações concretas pela via teórica, frequentemente sem resposta adequada aos problemas colocados pelos Comités Locais e de empresa ou pelas células.
Os organismos, muito virados para dentro de si mesmos e da orla que tocavam, limitavam-se sobretudo a tarefas de controlo viradas para dentro (cobrança de quotas, recolha de fundos, venda e distribuição da imprensa, controlo dos militantes e simpatizantes), era justificado, mesmo que implicitamente, por uma atitude crítica com a capacidade de mobilizar as massas, que o estádio de desenvolvimento da sua consciência impedia. Por isso, quando surgiam algumas movimentações sociais espontâneas, a organização partidária ia a reboque.
Mas é interessante referir como, em relação à sua companheira, admite uma atitude «pequeno-burguesa», protegendo-a, não a censurando ou fazendo concessões do ponto de vista da sua actividade que, de resto, se limitava às tarefas domésticas, à leitura da imprensa, à audição, gravação e transcrição das emissões Rádio Moscovo ou ao estudo e à dactilografia de documentos, isto é, uma vida virada para o interior da casa, sem qualquer forma de sociabilidade mais densa, nem sequer de vizinhança.
Martins Rodrigues assumia que acabara por encontrar aspectos pessoalmente benéficos na sua promoção a funcionário — casara nas vésperas de «mergulhar» na vida clandestina, tivera oportunidade de se tratar do ponto de vista da saúde e fora-lhe atribuída uma casa, mesmo que se tratasse de uma instalação do partido.
Ainda segundo a avaliação que faz da sua própria actividade, reconhece ter desenvolvido um oportunismo seguidista, explicando a falta de resultados práticos com as deficiências do Partido e vacilando em relação à necessidade de se sacrificar e arriscar mais, o que implicava uma maior exposição de rua.
Mas, na verdade, as recomendações dos dirigentes aos funcionários em matéria conspirativa sancionavam esse comportamento mais resguardado. Por esta altura, 1955-56, Francisco Martins Rodrigues era controlado por Américo Gonçalves de Sousa, do Comité Central e recorda que um dos aspectos que o chocou foi, num encontro com o controleiro,
«vir todo excitado, porque tinha tido um encontro com camaradas de base que me diziam que tinha havido uma greve em tal parte e ele dizia — "calma aí, deixa-os lá fazer greve, nós, o aparelho, temos de estar recuados, quer dizer, há lá camaradas, logo se vê....».(5)
Era deste isolamento, feito de rotineirismo, burocratização e muito calculismo que se autocriticava nas vésperas de ser preso em 1957. Poucos, funcionários como ele, o assumiriam de forma tão crua e tão directa, admitindo que a autocrítica a que procedia resultara da possibilidade de poder discutir de modo aberto e franco com outros funcionários.
O documento sobre o Que Fazer? não terá sido redigido muito longe da fase em que foi colocado com a companheira, juntamente com Albina Pato, Fernanda Paiva Tomás e Joaquim Carreira, numa casa clandestina onde se traduziam e imprimiam os materiais referentes ao XX Congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), em 1956. Levantara-se logo ali a discussão sobre o controverso relatório político de Nikita Krutchov a esse congresso e, como refere:
«Aquilo deu uma certa discussão. Fiquei um pouquinho estomagado, mas confesso que aceitei as teses. Mas o Joaquim Carreira, secretário da célula, um antigo operário da Marinha Grande, era mais de olho vivo. Aquela conversa começou a cheirar-lhe a social-democracia. Pedimos uma discussão com a direcção, foi lá o Júlio Fogaça, do comité central discutir connosco e explicou que a viragem do XX Congresso era boa. A seguir apareceu nos jornais o relatório secreto de Krutchov. "Isto é tudo mentira, não acreditem nisso, não existe nada disso", disseram-nos. Houve assim umas agitações, mas mais nada».(6)
Efectivamente, Fogaça explicava que o princípio da coexistência pacífica se devia à força da União Soviética que a impusera ao imperialismo americano decadente e que as dúvidas e questões dele e dos militantes que com ele trabalhavam se deviam «ao isolamento em que vivíamos e ao desconhecimento do que se passava no mundo»,(7) o que, para além do mais, era o reconhecimento do recomendado encasulamento em que viviam os funcionários.
Ainda em 1956 o Partido fornecia, no fundo, o mesmo tipo de explicações aos militantes em relação à invasão da Hungria, de que FMR tomara conhecimento pela audição de Rádio Moscovo e cujos argumentos não diferiam em nada daquilo que os dirigentes do PCP alegavam. Por isso, manifesta que apoiou sem reservas a invasão soviética para dominar a revolta húngara, desconhecendo em absoluto «toda a dimensão da luta antiburocrática, da formação de conselhos operários (...) Para nós só uma coisa contava: a luta do campo socialista contra a agressão imperialista.»(8)
Mas, mesmo nas questões de política geral, o argumentário oficial deixava sempre uma ponta de dúvida, principalmente em torno da via pacífica para o socialismo, que, no caso, era a admissão da possibilidade de derrube de Salazar por meios pacíficos, o que se tornava absurdo principalmente aos olhos de muitos militantes e funcionários para quem essa questão só se podia colocar em termos da violência revolucionária.
Francisco Martins Rodrigues é preso em 5 de Fevereiro de 1957, na rua, entregue à polícia por informador infiltrado no partido, com quem se ia encontrar, já noite, sendo de seguida assaltada a sua instalação clandestina e presa a sua companheira. Levado para o Aljube entre baixas por doença às enfermarias do Aljube e de Caxias e punições disciplinares com proibição de visitas da família, é julgado em 22 de Julho de 1958, sendo condenado «na pena de 3 anos de prisão maior, na suspensão dos direitos políticos durante 15 anos, na medida de segurança de internamento, indeterminado de 3 meses a 3 anos prorrogável, e no mínimo de imposto de justiça».(9)
Ou seja, se a pena se limitasse aos três anos, uma vez preso em 1957, seria libertado em Julho de 1960. Porém, evade-se em Janeiro desse ano, dispondo-se, ao contrário de outros, a arriscar a fuga quase no término da pena atribuída. A questão que no essencial se colocava era a elevada probabilidade de ver a sua prisão efectiva prorrogada indeterminadamente, por via da aplicação das iníquas medidas de segurança. E, por outro lado, sobretudo, o facto de querer manter a actividade política necessariamente clandestina, como funcionário, após a fuga.
Durante todo o período de prisão, contacta com muitos quadros e dirigentes do PCP. Percebe-se a simpatia por Francisco Miguel que, como dizia, «era tradicionalmente considerado o velho esquerdalho da Direcção dos tempos heróicos».(10)
Nesses períodos em que conviveu com Francisco Miguel, principalmente na sala 2-A da prisão do Aljube, onde eram mantidos presos vários quadros numa grande cela colectiva, durante mais de ano e meio, a prisão tornara-se para FMR uma espécie de universidade, o que, como admite, «teve uma certa importância na minha formação na altura».(11) Um ambiente apesar de tudo mais aberto e mais propício às conversas, aos debates e sobretudo à insubstituível transmissão de experiências, vivências partidárias, do que em Peniche, onde o sistema prisional era muito mais fechado e controlado, com um sistema de celas individuais e escassos períodos de recreio comum, com os guardas sempre por perto, atentos às conversas.
Porém, apesar das circunstâncias, é efectivamente a prisão que desencadeia um acelerado processo de evolução do seu pensamento crítico face à linha do Partido. Vivia a partir da cadeia e dos quadros e dirigentes que iam chegando as notícias da campanha massiva de Humberto Delgado, bem como da orientação partidária que Cunhal viria a designar de «desvio de direita». A direcção prisional do PCP centralizava e difundia as informações chegadas pelos mais variados expedientes do exterior, principalmente através das famílias.
As discussões e os debates eram extremamente limitados, mas faziam-se, aproveitando as mais diversas situações, como à volta de grandes baldes, descascando batatas para o rancho. Francisco Martins Rodrigues distingue como a atitude de Cunhal nesses debates se diferenciava de outros dirigentes:
«Cunhal era um tipo diferente de todos os outros dirigentes e cativava os que o conheciam. Em questões pessoais, ele não tinha problema nenhum de ser posto em questão, ouvir uma crítica. Reagia bem (...). No campo das discussões políticas — e volto a lembrar que estas discussões eram extremamente limitadas dentro da prisão — mostrava abertura. Partia de uma posição, mas avançava sempre como hipótese as posições contrárias. Para dar peso à sua, claro está. Mais tarde eu percebi que ele tinha uma formação mais dialéctica, menos rígida. Ele tentava convencer pela discussão, coisa que os outros dirigentes mais velhos não faziam. A estes, a insegurança ideológica levava-os para a atitude do tipo "está dito e arrumado, é assim!" e se alguém contestava levavam a mal. O Cunhal tinha percebido que era necessário convencer os militantes para que estes fossem eficientes».(12)
Martins Rodrigues reconhece que foi nos quatro meses que passou em Peniche que mais fortemente se lhe colocaram questões acerca da linha do Partido e que foi aí, inclusivamente, que o seu afastamento do PCP «começou a germinar».(13) Eram, sobretudo, dúvidas, inquietações, interrogações que se centravam na «política de direita» que vinha sendo desenvolvida, designadamente a campanha pelo «afastamento pacífico de Salazar», em 1959. O sistema prisional limitava os contactos, isolava os presos uns dos outros, reforçava a vigilância, limitava os contactos, mas não conseguia impedir a reflexão individual.
A falta de quadros dirigentes em liberdade e os contornos da linha política assumida partidariamente por Júlio Fogaça, assente em velhas e fundas convicções «direitistas» e amparadas pelo XX Congresso do PCUS, catalisaram a intenção de fugir, encontrada uma possibilidade para o efeito.
São conhecidos os detalhes da evasão colectiva de Peniche, do papel do guarda prisional aliciado e subornado, do aparelho de apoio no exterior e dos pormenores da fuga em si mesma.
Alguns dos que haviam fugido voltaram a ser capturados e o partido, sentindo o cerco a apertar-se, determinou a passagem de Cunhal, já eleito secretário-geral, para o exterior, inicialmente para Moscovo, onde se concentrou o Secretariado do Comité Central, que era na realidade quem dirigia o partido. Alguns dos que ficaram no interior ficaram «recuados» durante largo período de tempo. Martins Rodrigues foi colocado numa instalação nos arredores de Lisboa, donde não saiu durante praticamente um ano e onde inclusive andava descalço, ciciando as conversas com os camaradas que viviam na mesma instalação. Tratava-se de uma tipografia e o seu trabalho limitava-se à composição e impressão do Avante!, e ao estudo da imprensa e dos «clássicos» do marxismo-leninismo.
Foi, no entanto, a partir daí que começou a revelar um posicionamento mais crítico em relação à linha política, numa altura em que Álvaro Cunhal tinha corrigido o «desvio de direita» e restabelecido a linha do «levantamento nacional», que vinha sendo teorizado por si principalmente no IV Congresso (2.° Ilegal), de 1946.
As duas cartas conhecidas que FMR envia ao Comité Central ao longo de 1960, bem como o artigo que publica em O Militante, ainda usando o pseudónimo «Serpa», correspondem a essa fase em que se encontra na tipografia clandestina, então às portas de Lisboa, em Carnide.
Depois de três anos de prisão e de quase mais um de resguardo, numa situação que só lhe permitia tomar conhecimento da realidade pela imprensa legal e clandestina a que tinha acesso, esses três textos conseguem esboçar já parte significativa do travejamento político em que assentarão as suas ideias face ao PCP.
No artigo em O Militante, Martins Rodrigues saúda o que do V Congresso se veio, efectivamente, a tornar mais relevante do ponto de vista político — o reconhecimento do direito à independência dos povos coloniais, ainda que por vezes o partido viesse a baixar essa bandeira em nome da unidade antifascista com os sectores da burguesia liberal, de tradição republicana e colonialista, como se verificaria logo nas eleições de 1961, implicitamente pactuante com o Programa para a Democratização da República que o Directório Democrato-Social elaborou e no qual Mário Soares exerceu importante influência.
Mas, nessa matéria, o artigo introduz prematuramente outros aspectos que a realidade virá a confirmar, designadamente ao considerar que a luta contra o colonialismo «é ao mesmo tempo a que mais favorece a luta libertadora conduzida pelo nosso Partido, pois que arrancar das mãos do grande capital colonialista português e estrangeiro as suas fontes de superlucros em Angola, Moçambique, Goa, Guiné, etc., é quebrar os dentes ao fascismo em Portugal» (Documento 4); ao mesmo tempo que chama pela primeira vez a atenção para a mentalidade chauvinista e colonialista que penetrou inclusivamente a classe operária e vastos sectores populares, que não serão eliminados num curto espaço de tempo.
Martins Rodrigues neste artigo proclama, prenunciador, que
«se não conseguirmos bater rapidamente e por completo no terreno ideológico os preconceitos colonialistas arreigados em certas camadas da população, se não soubermos forjar entre as massas trabalhadoras das cidades e dos campos uma hostilidade decidida à ideia de guerra colonial sob quaisquer pretextos, poderemos sofrer revezes sérios e ver dentro em breve o nosso País envolvido numa selvática guerra em África ou na Ásia; se, pelo contrário, ao tentar desencadear a guerra colonial em defesa dos monopolistas e dos roceiros, o governo encontrar pela frente a negação à aventura militar, a simpatia popular pela causa da emancipação dos povos coloniais, a recusa das tropas em ir massacrar os trabalhadores africanos, nesse caso, a crise do domínio colonial poderá trazer ao nosso Partido e a todo o Povo português brilhantes êxitos na luta libertadora nacional» (idem).
Anos depois, já nas páginas do Revolução Popular, voltará ao assunto de modo substancialmente mais desenvolvido e aprofundado, marcando bem como a questão colonial era uma componente central de um discurso revolucionário, que o PCP só muito tarde assumiu, e ainda assim, envergonhada e contraditoriamente.
As cartas enviadas ao Comité Central (Documentos 5 e Documento 6), reportadas ambas ao papel central e independente da luta da classe operária, prendem-se com outro eixo estruturante do pensamento de FMR. Martins Rodrigues sustentava que ao partido e ao seu órgão central cabia conferir dimensão política às lutas da classe operária e não confiná-las à sua dimensão económica, afunilando-as, para mais, nos sindicatos nacionais, que entendia nunca terem sido órgãos de massas ou propiciadores de margem de manobra no seu seio.
A política entrista nesses órgãos orientados para a conciliação do trabalho com o capital e completamente tutelados pelo Governo, que o Partido defendia desde antes da «reorganização» de 1940-41, tivera, até aí, poucos resultados positivos, que se resumem aliás a um período confinado de tempo. Temas a que igualmente regressará, mais tarde.
Como prática corrente nos partidos comunistas, era exigida aos funcionários prestes a ascenderem ao Comité Central ou a passarem à clandestinidade uma autobiografia breve, mas suficientemente detalhada, incidindo quer nas origens familiares, quer em todo o percurso partidário até esse momento.
Será desta altura, em que a sua cooptação está na ordem do dia, que escreve então uma autobiografia, que termina afirmando:
«Actualmente, estou em desacordo com alguns aspectos da linha política do Partido expressos no Programa: conforme já expus desenvolvidamente, penso que a linha do Partido tem sido afectada desde 1956 por desvios oportunistas de direita que ainda não foram analisados e corrigidos»(Documento 7).
Portanto, quando cooptado, o Partido tinha conhecimento de que ele estava em divergência com aspectos da linha política e por isso, a subida ao CC assentava também na ideia de que, num posto dirigente, FMR amaciaria ou abandonaria tais divergências.
Em 1961, assinando já como «Campos», o seu novo pseudónimo, adquirido na qualidade de novo membro do Comité Central, insistirá no envio de cartas à Direcção do Partido, das quais conhecemos apenas duas, ambas redigidas em Agosto. Na primeira, coloca as suas divergências em termos da luta contra o oportunismo. Trata-se de um nota breve, em três pontos, que se reporta a situações concretas, exigindo que o Partido se demarque dessas situações, que considera oportunistas.
Persiste, por um lado, na demarcação do Partido em relação ao Programa para a Democratização da República, acusando a Direcção de manter os militantes numa situação confusa em nome da unidade com os sectores democráticos aliados, pois, em sua opinião,
«a falta de uma crítica nossa está a ser mais prejudicial à unidade do que seria uma crítica, uma vez que deixa desarmados muitos dos nossos militantes e muitos trabalhadores, enfraquecendo a acção do P.» (Documento 8).
Para além disso, entende que, no torvelinho das críticas desencadeadas contra o golpismo e o aventureirismo, o CC deixa a descoberto e por definir o modo como deve encarar as acções violentas, o que, em sua opinião, constituía outro factor de confusão dos quadros e militantes, pelo que sugere ser indispensável a clarificação da questão através da imprensa partidária.
Finalmente insurge-se contra uma nota da Direcção da Organização Regional da Beira Litoral na qual se defende que o partido deve tomar como consigna «Mostremos aos nossos patrões que só a independência de Angola serve os seus interesses», o que constitui, no seu entendimento, grave manifestação de oportunismo, desfocando por completo o carácter de massas que a luta anticolonial deveria assumir, atrelando-a aos interesses da burguesia.
Na segunda dessas cartas, substancialmente mais importante, sistematiza pela primeira vez um conjunto de aspectos acerca da «correcção do desvio de direita», praticamente dada por adquirida pela Direcção partidária. Refere-se em particular ao relatório sobre o «desvio de direita», que
«não estigmatiza suficientemente a missão a que se dedicou a Direcção do Partido em 56-59 e que foi facilitar a substituição do proletariado pela burguesia na direcção da luta antifascista, renunciando em vários aspectos ao papel revolucionário da classe operária e da aliança operário-camponesa».
Em particular, penso que atribuir a tese da «solução pacífica», ainda que parcialmente, a uma ligeireza e a uma confusão do Partido acerca da tese do XX Congresso do PCUS sobre a possibilidade da passagem pacífica ao socialismo é diminuir perigosamente a gravidade do seu carácter oportunista» (Documento 9),
pois, na realidade, entende que não se trata de uma mera confusão, como assinala a Direcção, mas representa sim o triunfo de concepções que, na sua opinião, são ideologicamente pequeno-burguesas, latejantes subterraneamente desde o debate sobre a «Política de Transição» no contexto da 2ª guerra mundial e do período imediatamente posterior.
A partir desta constatação, discorre sobre o carácter incompleto que estava a adquirir a crítica ao «desvio de direita», ao não se alicerçar nos antagonismos de classe em que assentam as relações sociais e substituindo a aliança operário-camponesa, nunca ensaiada, com a aliança do proletariado com a burguesia oposicionista e, deste modo, o CC não estaria a armar devidamente o Partido do ponto de vista político e ideológico, ao mesmo tempo que propiciava a recomposição da burguesia.
Para esse efeito considerava necessário que a Direcção não só desmontasse, do ponto de vista de classe, a argumentação e o modelo doutrinário oportunista, como deveria tomar medidas concretas para que nenhum dos dirigentes que haviam sustentado estas posições se pudessem manter no Comité Central.
Na realidade, a reunião do Comité Central de Março de 1961 tinha dado por adquirida a «correcção do desvio de direita», o que, do seu ponto de vista, considera completamente prematuro, pois
«Os desvios repetir-se-ão se a Direcção do Partido não criar condições para uma verificação e aprofundamento constantes dos aspectos mais gerais da linha do Partido» (Documento 8).
As posições de Martins Rodrigues quanto à linha política de crítica e rectificação ao «desvio de direita» punham em causa a profundidade dessa correcção, que, tendo sido obra de Álvaro Cunhal, este dificilmente poderia deixar de interpretar enquanto tal.
Martins Rodrigues admite que com a sua entrada para o Comité Central «talvez houvesse a ideia de que com a cooptação eu acabaria por entrar na onda e tomar as minhas responsabilidades»,(14) que era o mesmo que dizer abdicar do gume afiado das suas críticas, que já não se dirigiam apenas ao «desvio de direita», mas também ao modo como Cunhal corrigira politicamente esse «desvio».
Há referências ainda a um extenso documento enviado à Direcção em Agosto de 1962, na sequência das jornadas de luta desse ano, onde sublinha a debilidade do trabalho operário, a quase inexistência de actividade entre os camponeses, bem como o baixo nível teórico dos quadros, traçando uma situação orgânica grave, não do ponto de vista conspirativo, mas em função das concepções oportunistas que se vinham instalando no Partido à sombra da «correcção ao desvio de direita», consagrando na prática a linha de unidade entre o proletariado e a burguesia, formulada desde o IV Congresso.
Nesse documento defende a necessidade urgente de o Partido proceder ao estudo da luta de classes em Portugal e à definição das tarefas imediatas para a revolução que, apoiando-se na aliança operário-camponesa, deveria ser democrático-popular e não democrático-burguesa ou democrático-nacional, como lhe chamava Cunhal, propondo a edição, para estudo interno, de Duas tácticas de Lenine.(15)
Chamado em Dezembro de 1962 a integrar o então criado Comité Executivo, aproveita essa reunião para expor as suas críticas e pontos de vista, reclamando o aprofundamento da crítica ao oportunismo, a análise da sociedade portuguesa numa perspectiva marxista-leninista e uma informação sobre o movimento comunista internacional, em que o dissídio sino-soviético começava a assumir dimensão pública.
Efectivamente, o Secretariado, em nome de todo o Comité Central e de todo o Partido, alinhava-se, como a maioria dos partidos comunistas, pelo lado soviético, não se inibindo de criticar quer o PC da China, quer o Partido do Trabalho da Albânia.
Assim sucedera no XXII Congresso do PC da União Soviética, em Outubro de 1961, em que a delegação portuguesa era composta por Álvaro Cunhal e por António Dias Lourenço. Cunhal, no seu discurso, transmitido de resto pela Rádio Moscovo, publicado na imprensa soviética e circulando internamente no PCP, considerava errada e perigosa a orientação do PTA.(16)
Em Janeiro de 1963, o CC torna pública uma declaração datada de 19 desse mês, intitulada «Em defesa da unidade do movimento comunista internacional», segundo a qual
«os dirigentes do Partido do Trabalho da Albânia, fechando-se numa posição dogmática e procurando semear a cisão nas fileiras do movimento comunista, combatem as teses sobre as formas de passagem ao socialismo, mantêm no seu país os métodos condenáveis do culto da personalidade, rejeitam de facto a política leninista de coexistência pacífica».
E acrescenta que
«o facto de o Partido Comunista da China dar apoio, estímulo e incitamento ao Partido do Trabalho da Albânia, em vez de os ajudar a rectificar as suas posições, mostra que o Partido Comunista da China não respeita também as conclusões das Conferências de 1957 e 1960 que ele próprio subscreveu. Esta grave situação leva o nosso Partido a considerar que, embora o oportunismo de direita possa continuar a ser em alguns partidos o perigo principal, no conjunto do movimento comunista, o principal perigo da hora presente é o dogmatismo».(17)
Não admira por isso que tal declaração fosse objecto de pronta reacção de Martins Rodrigues, pois surgia menos de um mês depois da reunião de Dezembro de 1962, onde participara e onde o assunto não suscitara discussão, mas em que alguns dos presentes pediram informações mais detalhadas sobre essa matéria, que nem sequer era do conhecimento de todos os dirigentes que nela participaram.
Numa carta ao Comité Central datada de 30 de Janeiro de 1963 (Documento 10) refere-se a isso mesmo, desmontando o carácter contraditório das justificações dadas pela Direcção do Partido, de que fazia parte, mas para as quais não lhe fora solicitada contribuição.
Insurgia-se designadamente contra a «reabilitação» da Liga dos Comunistas Jugoslavos, cuja actuação as Declarações de 1957 e 1960 criticavam, continuando a sancionar a anterior exclusão da LCJ, Liga dos Comunistas Jugoslavos, do movimento comunista; enquanto, ao mesmo tempo, reclamavam contra os Partidos Comunistas da China e da Albânia pelo facto de não respeitarem as conclusões das mesmas Conferências.
Rejeitava no fundo, nessa como noutras cartas enviadas ao longo do primeiro semestre de 1963, que fosse o dogmatismo o perigo principal que o movimento comunista enfrentava, mas sim o oportunismo de direita, para além de que fora o PCUS e os partidos que o secundavam neste dissídio internacional quem primeiro colocara a público as divergências que deveriam ser debatidas no seio do próprio movimento, como assunto interno que à sua unidade se referia.
Propunha, em síntese, e depois de discordar «veementemente» da Declaração do CC, que o Secretariado elaborasse um relatório clarificador da situação e esclarecesse as divergências em presença.
Há uma resposta do Secretariado a esta carta ainda em Fevereiro, de que é dado conhecimento à Comissão Executiva, incluindo FMR. Aí afirma-se que Martins Rodrigues está muito mal informado sobre os assuntos que trata, pois «se o cam. C[ampos] possuísse uma informação pormenorizada, com mais facilidade poderia fornecer o fundo do problema».(18) Porém, considerando a complexidade dos problemas, concordaria que isso, por princípio, fosse feito por escrito, mas para logo considerar não haver condições para o efeito. Assim, só seria possível prestar tais esclarecimentos verbalmente e apenas em aspectos parcelares, entendendo que a Declaração de 19 de Janeiro continha já em si os dados gerais do problema.
Acrescenta o mesmo Relatório que já em Setembro de 60, isto é, antes da Conferência de Moscovo, o CC se havia pronunciado sobre as divergências no movimento comunista internacional através do documento «Três Problemas da Actualidade», publicado em O Militante e atribuído a Álvaro Cunhal, onde se criticava, embora de modo não explícito, o documento «Viva o Leninismo» do PC chinês, não tendo havido qualquer reacção ou manifestação em contrário da parte de Martins Rodrigues.
O referido relatório explica que em finais de 1962 a polémica entre soviéticos e chineses atingiu o ponto máximo e que o PCP sempre manifestou discretamente a sua opinião, acrescentando que, no início do ano seguinte, o PCUS tinha proposto, no VI Congresso do Partido Socialista Unificado da Alemanha, que cessasse o carácter público dessa polémica, com o que o PC Português concordou, mas não respeitou, justificando essa atitude pública assim:
«Ao cessar a polémica, o nosso Comité Central tinha de atender aos seus deveres para com todo o Partido e o povo português. A imprensa burguesa explorava largamente as divergências existentes. Os nossos militantes e o nosso povo tomavam conhecimento da existência do problema de forma defeituosa e ficavam sem saber qual o fundo das divergências e qual a posição do nosso Partido em relação a elas. Impunha-se um esclarecimento público e claro. Ele foi feito na Declaração de 19 de Janeiro».(19)
Simultaneamente, acusava-se FMR não só de estar mal informado, mas principalmente do facto de que as suas «opiniões resultam das suas próprias opiniões dogmáticas e sectárias», propondo, finalmente que «sejam criadas logo que possível condições para uma longa conversa do camarada C. com o camarada D.»,(20) isto é, entre Martins Rodrigues e Cunhal.
Martins Rodrigues conhecia efectivamente essas divergências, pois, tal como escutava Rádio Moscovo, também escutava Rádio Pequim e aí, em Abril de 1960, tomara conhecimento das posições chinesas, expressas nessa altura justamente através do documento «Viva o Leninismo».
Todavia, nessa fase FMR não se posicionava por nenhum dos pólos em presença; considerava sim inaceitável que o Secretariado, em matéria tão sensível, se sobrepusesse ao Comité Central, não suscitasse qualquer debate nessa matéria, sendo o assunto pura e simplesmente desconhecido da maioria do CC.
Martins Rodrigues, em duas cartas ao CC datadas de Abril de 1963, [obs. MIA: vide carta-1 e carta-2] desenvolvia fundamentadamente essas matérias, baseando-se largamente na Revista Internacional e noutros materiais do movimento comunista, segundo os quais se poderia verificar que o perigo que o Partido enfrentava era o oportunismo de direita, o revisionismo face aos ensinamentos do marxismo-leninismo que inclusivamente contaminava as Declarações de Moscovo de 1957 e 1960.
A insistência de Martins Rodrigues repercutia-se na Comissão Executiva. Requeria reuniões especificamente para discutir estes assuntos, tendo havido pelo menos uma reunião dedicada em especial a estas matérias, em Coimbra, na instalação de Blanqui Teixeira, mas da qual guardou uma ideia de que a discussão tivera baixo nível político e ideológico. Nas suas memórias, Alexandre Castanheira, que também integrava a Comissão Executiva, diz que Martins Rodrigues estaria «a criar problemas com ideias sobre a Revolução chinesa, sobre a necessidade da luta armada, etc.»(21)
Bloqueada a discussão, em divergência aberta, restava a conversa com Álvaro Cunhal, pelo que FMR seria o membro da Comissão Executiva a participar na reunião do Comité Central a realizar em Moscovo. Era aliás a primeira vez que o CC do PCP reunia no exterior do país. Blanqui Teixeira fora entretanto preso e a sua instalação clandestina assaltada nas vésperas dessa reunião, pelo que Castanheira se manteria no interior, enquanto Martins Rodrigues levava o relatório da Comissão Executiva a ser apresentado na reunião e teria oportunidade de discutir com o CC, e em particular com Álvaro Cunhal, as divergências políticas.
Segue o percurso normal dos quadros e militantes enviados ao exterior em missão partidária, utiliza um dos aparelhos de fronteira, na zona de Montalegre, atravessando-a a salto, para contactar militantes que a haviam transposto legalmente de carro e com eles seguir até Paris, passando a usar documentos falsos. De Paris faz escala em Praga até chegar a Moscovo no Verão de 1963, com alguns dias de avanço em relação à data prevista para a reunião do Comité Central, que se realiza nos arredores da capital soviética, numa grande casa de campo rodeada de altos muros e com guardas armados à porta,(22) procedimento normal para instalações do PC da União Soviética, que tanto serviam para reuniões de partidos comunistas na clandestinidade, como para férias de dirigentes partidários.
À reunião, que durou quatro dias, teriam assistido oito ou nove elementos, embora do interior tivesse ido, separadamente de Martins Rodrigues, apenas António Gervásio. Participaram ainda os membros do Secretariado — Cunhal, Vilarigues e Joaquim Gomes, bem como Francisco Miguel e Georgette Ferreira, membros efectivos no exterior e ainda Veiga de Oliveira e Pedro Ramos de Almeida, funcionários que não pertenciam ao CC, mas que desenvolviam actividade junto da emigração política, quer no Brasil, quer em Argel ou em França.
Francisco Martins Rodrigues apresenta o relatório da Comissão Executiva elaborado por Blanqui Teixeira, fornece um conjunto de informações sobre a situação no país e depois passam à discussão das divergências, o que, em matéria de questões internacionais, se faz em torno do documento «A situação no movimento comunista internacional».(23)
Expõe os seus pontos de vista, apoia as posições chinesas em matéria internacional, critica a posição ambígua e muito moderada do Partido no início da guerra colonial, defende a conquista dos camponeses para a aliança com o proletariado e a via violenta para o derrube da ditadura, classificando abertamente de oportunista a orientação política, entretanto reposta por Álvaro Cunhal a coberto da correcção do «desvio de direita».
Como era de esperar, e apesar da expectativa completamente frustrada que ainda depositava em Francisco Miguel, não teve qualquer apoio por parte dos membros do CC que participaram na reunião, que consideraram as suas opiniões como consubstanciando uma linha política abertamente divergente, esquerdista e pró-chinesa.
Derrotado e isolado no seio do Comité Central, é despromovido da Comissão Executiva, mas mantido no CC, como membro suplente. Discutem-se as suas futuras tarefas desde ser secretário de Cunhal, o que este recusa liminarmente, até se manter no exterior como dirigente ou ir para Praga. Caso abandonasse a militância, prometiam-lhe emprego e a possibilidade de reunir a família — a companheira e os dois filhos — no exterior.
Quer durante a reunião, quer depois, numa viagem de um mês pela URSS, sempre acompanhado de Francisco Miguel, tentam segurá-lo, para evitar estragos com uma dissidência que pudesse encontrar eco no interior. É depois enviado para Paris, onde Sérgio Vilarigues e Georgette Ferreira tentam dissuadi-lo dos seus pontos de vista, mas sempre enquanto membro do CC, entregando-lhe inclusivamente trabalho de organização junto da emigração económica e do número crescente de desertores à guerra colonial que iam chegando à capital francesa.
Apercebe-se de imediato do enorme descontentamento que grassava nas fileiras partidárias, sobretudo junto dos jovens desertores e, juntamente com Humberto Belo, também ele desertor, congeminam a ruptura com o PCP, tanto mais que sabiam, através de Manuel Claro, que dois quadros de elevado potencial estavam em Argel em divergência com o Partido — João Pulido Valente e Rui d'Espiney, que integravam a JAPPA, Junta de Acção Patriótica dos Portugueses na Argélia, uma organização aderente da FPLN, Frente Patriótica de Libertação Nacional.
Desses contactos resultará o abandono do PCP por Francisco Martins Rodrigues. Sai da casa onde vivia com um casal de funcionários do PC Francês, levando uma máquina de escrever, 300 francos e apropriando-se de vasta documentação do PCP depositada numa casa-arquivo a que tinha acesso.
Em Dezembro de 1963 redige o documento que, do ponto de vista político e ideológico, enquadra e justifica a sua ruptura com o Partido Comunista - «Luta pacífica e luta armada no nosso movimento» que, como reconhece, foi escrito «um bocado na precipitação de acompanhar a minha saída com um documento público»(24) (Documento 14).
Em Janeiro de 1964, quando o processo de constituição da FAP (Frente de Acção Popular) está praticamente realizado, o PCP torna públicas primeiro uma circular do CC dirigida aos militantes do Partido e, um mês mais tarde, embora com data de Dezembro de 1963, uma Resolução do CC, em que se informa que Francisco Martins Rodrigues foi expulso (Documento 27 e Documento 28).
Trata-se efectivamente de documentos diferentes, mas com o mesmo objectivo: comunicar a expulsão de FMR do Partido. Mas há entre eles uma diferença substancial, pois enquanto o primeiro, de Janeiro de 1964, centra as razões da expulsão em matérias directa ou indirectamente decorrentes das divergências políticas; o segundo documento, datado de Dezembro de 1963, embora efectivamente distribuído em Fevereiro de 1964,(25) coloca os termos da expulsão fundamentalmente em questões pessoais.
Assim, no primeiro dos documentos, uma circular do CC aos militantes do PCP (Documento 27), sobressaem razões como «incompreensões acerca da orientação do Partido», «desrespeito do centralismo democrático», antecedentes graves, qualificados de «esquerdistas» e «oportunistas de direita»,«divergências acerca da orientação do Partido», que «as suas ideias apareciam divorciadas do marxismo-leninismo», revelavam «uma profunda ignorância da situação económica e política portuguesa e das experiências de luta» do PCP, embora fosse dizendo que «Nenhuma das medidas disciplinares foram tomadas por motivo das suas opiniões divergentes». A terminar, a circular acusava-o de uma «actividade cisionista e anti-partido», concluindo que «FMR passou sem pudor ao campo dos inimigos do Partido» e por isso era expulso.
O segundo, uma «Resolução do Comité Central» (Documento 28), que aparentemente teve uma divulgação muito mais ampla, é uma pequena nota com quatro acusações a determinar a sua expulsão — «deserção das tarefas que lhe haviam sido confiadas», «abandono da instalação clandestina», «apropriação indevida de dinheiro do Partido» e «apropriação indevida de documentos do Partido». Não é mencionada qualquer incidência política e há inclusivamente a preocupação de sublinhar que a expulsão «é determinada apenas pelos factos referidos e não por discordâncias de carácter político».
Em menos de três meses, as acusações de opinião política eram substituídas por aspectos de natureza ética ou moral. E percebe-se, naturalmente, porquê, pois esvaziando-se o conteúdo político das divergências, ignorando-as em absoluto, desaparecendo inclusive as acusações de cisionismo ou de passagem para o campo do inimigo, era a conduta moral de FMR que originava a expulsão, factor bastante mais susceptível de indignar a generalidade dos militantes, além de desvalorizar o debate político e ideológico em torno da sua saída do Partido, onde sectores largos facilmente concordariam com o corpo de ideias e propostas que avançava, designadamente em matéria da violência para o derrube do regime ou da necessidade da aliança operária-camponesa.
Tal era o ambiente no interior do PCP, que Rui d'Espiney, ainda militante, sendo incumbido de recuperar contactos com militantes soltos que haviam escapado às declarações de Rolando Verdial — o qual, ao passar-se para a PIDE em 1963, desmantelara parte importante da organização partidária — verifica, na esmagadora maioria dos contactos que estabeleceu, forte posicionamento crítico quanto à via não violenta para derrubar o regime.(26)
O caso «Campos» foi objecto de debate dentro do Partido, mas afunilado no enquadramento que ao Comité Central mais interessava, diluindo ou omitindo as questões políticas, essas sim, verdadeiramente substantivas na situação que o PCP atravessava.
Mas, na realidade, mesmo essa dimensão moral era impudente, pois FMR era funcionário do Partido desde 1954. Tudo o que tinha, desde a instalação em que vivia, aos objectos que utilizava ou ao salário que recebia, pertencia ao Partido. Ele, como qualquer outro funcionário mergulhado na clandestinidade, deixava de ter objectos ou qualquer outra coisa de pessoal e, nesse sentido, fosse com o que fosse que abandonasse o PCP, sem consentimento deste, podia ser, e era, considerado como roubo. Ou seja, uma dimensão que funcionava também como importante factor dissuasor para qualquer funcionário em divergência que decidisse abandonar intempestivamente o Partido.
De resto, nas vésperas de ser expulso, FMR responde às acusações que lhe são feitas pelo Partido em Dezembro de 1963, dizendo tencionar devolver o material de que se teria «apropriado indevidamente» — «uma máquina de escrever; materiais do Partido; um saco de viagem; o meu salário de Dezembro; um documento; algumas estatísticas».
Já em Março de 1964, completamente fora do Partido, publicadas e divulgadas a circular e a resolução que o expulsa, ainda escreve uma carta ao CC, assumindo o abandono do Partido, descartando-se das críticas e justificações morais em que se baseiam esses documentos da Direcção, reafirmando breve, mas sistematizadamente, as divergências que o separam do PCP e as razões pelas quais concluiu que dentro do Partido deixaram de haver condições para um debate sério, profundo e consequente, rematando-a com determinação:
«Se o Comité Central fugir às suas obrigações perante o Partido, se continuar a pretender resolver com expulsões, insultos e calúnias uma questão de princípios, podereis estar certos de que surgirão comunistas que tomarão sobre si a tarefa de defesa do marxismo-leninismo, da defesa do internacionalismo proletário e da condução do movimento revolucionário português, sejam quais forem as dificuldades que surjam nesse caminho» (Documento 16).
Na realidade, era já de uma espécie de carta aberta que lançava aos militantes do PCP do lado de fora do Partido, com o objectivo de congregar apoios.
Da discussão travada nos organismos foi possível reunir alguns relatórios (Documentos 29, 30, 31 e 32) de sentido e com argumentação diferente, revelando uma heterogeneidade relativa, mas que só residualmente se traduziria por um apoio frontal e assumido às teses de Martins Rodrigues.
«Luta Pacífica e Luta Armada no nosso movimento» torna-se texto fundador de uma nova corrente no seio do movimento operário, que abre justamente com a declaração de que
«A reunião de Agosto [de 1963] do Comité Central do nosso Partido teve o grande mérito de ter colocado frente a frente duas linhas divergentes para a actividade do Partido» (Documento 14).
A linha de FMR separava-se em divergência insanável com o PCP e os principais artigos publicados nos seis números editados do Revolução Popular, órgão do Comité Marxista-leninista Português entre Outubro de 1964 e Dezembro de 1965, constituem a plataforma teórica, política e ideológica, da corrente doravante designada de «marxista-leninista».
Essa plataforma seria assimilada, mesmo que de modo diverso, pela maior parte de pequenas organizações «marxistas-leninistas», maoístas e pró-albanesas, que até Abril de 1974 se multiplicariam, enleadas num discurso sobretudo retórico, muito baseado no exílio francês e sem dispor de início de qualquer base de massas ou implantação operária no interior, o que só a partir dos anos 70 se começará a alterar, embora com expressão dispersa e débil.
A geração de raiz desta corrente, onde surgem associados os nomes de Martins Rodrigues, João Pulido Valente e Rui d'Espiney, continuou a polemizar com o PCP e a condicionar em boa medida a actividade do próprio Partido, que persistia em afirmar o dogmatismo e o esquerdismo como perigo principal a combater, não podendo por isso descurar o flanco «à esquerda», susceptível de contaminação pelas ideias de Martins Rodrigues, nem evitar o combate às posições que, no seu seio, se manifestavam «à direita», permeáveis ao corpo de ideias que consubstanciara o «desvio de direita».
A direcção de Álvaro Cunhal permitiu que a identidade do PCP se construísse «à esquerda», face ao «desvio de direita», enquanto não foi possível configurar uma corrente baseada na crítica radical do «desvio de direita» e que, mesmo que sem capacidade de agregação política consistente, equivaleria a remeter o cunhalismo para uma posição «de centro».
Nesta fase, há na crítica de Francisco Martins Rodrigues a Cunhal uma interpretação mais próxima do conceito dimitroviano de frente popular. O primado da unidade da classe operária deveria ser o sustentáculo da frente única, com a sua actividade necessariamente independente, mas susceptível de fazer a aliança com os aliados preferenciais no domínio social, isto é, a aliança operária-camponesa, e não com os assalariados agrícolas a sul e a burguesia liberal no norte e centro, que vinham sendo duradouramente encarados como substitutivos do campesinato. Daí a sua crítica em relação ao abandono da aliança operária-camponesa que, na forma como o PCP a encarava, entendia ser na prática substituída pela aliança com a burguesia liberal, oposicionista e de extracção republicana.
Nesse sentido, a abordagem do problema que é feita por FMR, particularmente nos artigos «O abandono da aliança operária-camponesa» (Documento 18) e «Luta de classes ou "unidade de todos os portugueses honrados"» (Documento 19), assim como no artigo «Isolar e aniquilar os sindicatos fascistas», procura introduzir um modelo de análise de classes em maior conformidade com a interpretação das teses dimitrovianas sobre a política e a constituição das frentes populares.
Estas concepções tinham ainda implicações na etapa da revolução, contrapondo Martins Rodrigues a etapa da revolução democrática e popular à revolução democrática e nacional, tal como era teorizada por Álvaro Cunhal, principalmente após o Relatório ao Comité Central, de Abril de 1964, o conhecido «Rumo à Vitória», que o Programa aprovado no VI Congresso, um ano mais tarde, legitimaria.
As questões que se prendiam com o problema colonial, central de há muito no pensamento de FMR, estão patentes no artigo «Os comunistas e a questão colonial», em que sistematiza e aprofunda um conjunto de aspectos a que estava particularmente atento pelo menos desde 1960. Era uma posição clara, internacionalista, que prognosticava o futuro em termos dos efeitos de uma guerra colonial sobre o regime, bem como não iludia o chauvinismo que contaminava sectores muito vastos da sociedade portuguesa, incluindo o proletariado.
De qualquer modo, os esforços orgânicos de implantação e de construção de um aparelho no interior tiveram resultados bastante débeis, favorecendo a infiltração de informadores da PIDE, o que levaria ao chamado «crime de Belas», em que os principais dirigentes da FAP/CMLP em liberdade executaram um dos informadores que reconheceria estar a trabalhar para a polícia e ter estado na origem da prisão de João Pulido Valente.
A desagregação da organização pela polícia fez-se de modo muito rápido e culminaria com a prisão de Martins Rodrigues e Rui d'Espiney nos primeiros dois meses de 1966. Sobravam apenas militantes e simpatizantes isolados no interior do país e alguma organização no exterior, particularmente em Paris, que se enlearia em disputas internas e em lógicas discursivas com excesso de retórica e sectarismo entre as múltiplas organizações que a partir daí se dividiriam e subdividiriam.
Condenados a longos anos de prisão, Francisco Martins Rodrigues, Rui d'Espiney e João Pulido Valente foram contactando com inúmeros militantes da intrincada rede de organizações «marxistas-leninistas»,(27) que iam sendo presos em sucessivas vagas.
A prisão tornava-se também um local de combate contra os sistemas disciplinares prisionais, ao mesmo tempo que FMR escreve na prisão, nas condições possíveis — incluímos nesta antologia quatro textos, dois com incidência na sua situação prisional — «A privação do sono»(28) (Documento 23) e a sua defesa em tribunal(29) (Documento 24) — que, não obstante ter sido impedido de a ler em plena audiência, constitui um interessante texto – assim como alguns escritos, quer sobre a história do movimento operário(30) (Documentos 25), quer sobre a greve geral revolucionária de 1934(31) (Documento 26).
Na longa prisão que sofreram e que correspondeu aos anos de crescimento e multiplicação das organizações «marxistas-leninistas», Martins Rodrigues e os seus companheiros dirigentes da antiga FAP/CMLP nunca se quiseram imiscuir nas organizações que iam brotando, discutindo com todos, no entanto, na base da plataforma contida nos principais artigos publicados no Revolução Popular. Estes textos, juntamente com os outros aqui publicados, contribuíram decisivamente para a estruturação, mesmo que dispersa e pulverizada, da corrente marxista-leninista, e prosseguiriam, particularmente do período de crise revolucionária de 1974-75 em diante e até pelo menos aos anos 80, como documentos fundadores da corrente mais importante que se desmembrou do PCP, procurando criar uma alternativa à esquerda.
João Madeira
Vila Nova de Santo André, Abril de 2012